Durante esta visita performativa gaspeamos histórias, viajamos entre tempos, cruzamos fronteiras e atravessamos continentes. Calcorreamos memórias sem acabamento e imaginamos o mapa que nos leva ao futuro.
Teaser Cada um sabe onde lhe aperta o seu sapato
Memória
do Processo
Cronologia para memória futura
Cada um sabe onde lhe aperta o seu sapato
4 de janeiro de 2021, 10h
Primeira reunião geral da equipa Interferências 1.0, no fAUNA, em Joane.
Este é o pontapé de saída, o arranque, o início de tudo. Até acontecer, um projecto pode demorar anos. Começa por uma ideia, depois muito trabalho, muita gente envolvida, muitas reuniões, muitas candidaturas, mais reuniões, mais pessoas, mais tempo.
Chego a este projecto numa fase em que tudo está pronto para que os artistas comecem o seu trabalho. É um privilégio.
Nesta reunião, organizamos as agendas, recebemos as coordenadas finais, e, sobretudo, falamos sobre a essência do que se pretende trabalhar. Da confusão de notas que escrevi no meu caderno e que só a mim me fazem sentido, noto que sublinhei várias vezes as palavras: interferir, identidade e pertença.
Ainda não sei o que vai sair daqui, e ainda bem, porque é essa a beleza do caminho.
13 de janeiro de 2021
A equipa artística do Interferências 1.0 visita o Museu da Chapelaria e o Museu do Calçado em São João da Madeira, guiados por Joana Galhano.
O meu olhar já está afiado para o que vou trabalhar: o calçado. Imagino um percurso. Pés desenhados no chão que vão indicando o caminho. Não poderá ser apenas sobre o calçado, tem de se sentir o calçado! Imagino percursos que começam no exterior do museu, que passam por dentro dele, e que voltam ao exterior.
Parece que o tal caminho começa a encontrar-se.
15 de janeiro
Entra em vigor um novo confinamento, espaços culturais têm de fechar, o teletrabalho é obrigatório.
Como é que vamos fazer isto? Quando vamos sair disto?
Como se começa um projecto que pretende criar laços com e entre a comunidade sem podermos estar juntos?
20 de janeiro de 2021, 13h30
Consulta de arquivo do Museu do Calçado em São João da Madeira
Saio do Porto, de carro, com uma declaração de mobilidade na mochila. Sou parada pela polícia à entrada da Ponte do Freixo.
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Tem autorização para sair da cidade?
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Sim, vou trabalhar.
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Não pode fazê-lo em casa?
Mergulho no arquivo do Museu do Calçado durante toda a tarde.
Encontro uma publicação sobre a entrada de Portugal para a CEE, diz: “Caminhada para a CEE... mas com que sapatos?". Oiço aplausos. É um comício do PCP com João Ferreira a concorrer para a Presidência da República que acontece mesmo ao meu lado.
25 de janeiro de 2021, 10h
Reunião com professor Daniel, por ZOOM
Os quatro artistas que irão estar a desenvolver o Interferências 1.0, juntamente com a equipa do Teatro da Didascália e com a Joana Galhano, encontram-se com o professor Daniel por ZOOM, para ouvirmos um pouco sobre a história de São João da Madeira que se cruza, inevitavelmente, ora pela indústria do Calçado, ora pela indústria da Chapelaria, ora pela fábrica Oliva. E, claro, tudo isto se cruza na Praça Luís Ribeiro ao longo de dezenas de anos, e se encontra nas noites livres no Cinema Imperador, para desanuviar a cabeça de tanta vida de trabalho. São também estes os cinco eixos que iremos trabalhar ao longo do próximo ano e meio.
Olho para as caras dos meus colegas pelo computador. Os nossos olhos brilham com as histórias que nos chegam, e com as possibilidades de criações artísticas que começamos a imaginar. O mundo é, neste momento, um lugar estranho e incerto. Não sabemos como estaremos daqui a dois meses, e muito menos daqui a um ano. Mas o trabalho dos artistas é também o de imaginar possibilidades e mundos alternativos. De repente, nestas quatro horas de aula, foi como se tudo fosse possível. Assim o espero.
28 de janeiro de 2021
Reunião Interferências 1.0
Os casos de COVID-19 continuam a aumentar. Continuamos em casa, sem saber quando haverá algum alívio nas restrições. Avisam-me de que será necessário adaptar o processo criativo às contingências. Tudo se mantém: o projecto, as datas, as apresentações…
A única forma de trabalhar neste momento é de um para um, virtualmente.
Se só puder ser em on-line, será. Se nem todas as pessoas tiverem forma de se ligar a um computador com internet, vamos arranjar maneira. Temos de fazer. Temos de continuar, agora, mais do que antes, mais do que nunca.
3 de fevereiro de 2021
Nova reunião para o projecto.
Reunião Zoom com participantes para lhes explicar o projecto. Cheguei atrasada porque estive numa reunião com o Ministério da Cultura, os apoios extraordinários à cultura não estão a chegar às pessoas e é preciso reivindicar.
Depois de chegar atrasada, tive de sair mais cedo da reunião, de forma abrupta e desorganizada. A minha cadela Mel, de 16 anos, foi para o veterinário. Acabámos de nos despedir da mais doce companheira de vida, e acompanhá-la na sua viagem até às estrelas. Que dia triste.
muitos dias de fevereiro de 2021
Continuamos em confinamento, a reinventar formas de trabalhar e de criar. Vou trabalhando sozinha, lendo, pensando e investigando sobre a indústria do calçado. Vamos reunindo on-line entre equipa, durante horas, para trocar ideias, ajustar pormenores. Há uma parte do projecto que nunca pára, a mediação com as pessoas. É preciso continuar a encontrá-las, a estabelecer laços, a explicar-lhes o projecto, a desafiá-las a fazerem parte. E assim vamos seguindo.
18 de fevereiro de 2021, 10h -13h
Entrevista a professor Daniel, por ZOOM
De novo, com o professor Daniel a orientar a sessão, vamos aprendendo mais sobre São João da Madeira, a história do concelho, do brasão da cidade, sobre as indústrias, a toponímia, os homens ilustres, as famílias abastadas, mas também as pessoas descalças, o trabalho infantil, ou o Chico Folheteiro - homem dos sete ofícios.
Pelo meio, o professor Daniel diz-nos:
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“Dizia-se que, em São João, um homem sem chapéu era como um galo sem crista”.
Se o conseguir convencer a participar no projecto, irei voltar a colocar esta frase na sua boca. Tão bela!
19 de fevereiro de 2021
Entrevista a Xavier Melo, por ZOOM
Apesar de o projecto ainda não ter arrancado na sua relação com os participantes, há muito que se vai construindo, seja nas nossas cabeças, seja em reuniões e trabalho preparatório, seja no mapeamento de possíveis participantes, na activação e mediação desses contactos, na realização de entrevistas, nas pesquisas e no estudo.
Ao longo das últimas semanas, em várias conversas que ia tendo, o nome Xavier ia surgindo.
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“Tens de o conhecer!” - diziam-me - “Anda a coleccionar todo o conhecimento ancestral de fabrico manual de um sapato. Faz um sapato com as mãos, do início ao fim.”
Conheci-o, finalmente, numa conversa por ZOOM, pelas onze da manhã.
Eu estava na minha casa, e ele no seu atelier. Através do seu telemóvel, mostrou-me cada parte do seu local de trabalho, desde o local onde recebe o cliente e lhe tira as medidas do pé, até ao sapato estar pronto e o calçar pela primeira vez nos pés de quem o encomendou. Tudo feito com as suas mãos.
Falámos sobre o estigma que é para os jovens que vão trabalhar para o calçado hoje em dia, falámos de como é belo saber fazer um sapato com as mãos, falámos de bicos de papagaio, pé diabético, tipos de banco de sapateiro. No fim, disse-me:
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“O sapateiro tem aquela coisa de se meter no pé das pessoas. Eu gosto de olhar para os sapatos e imaginar as vidas de quem os calça.”
Será que poderemos contar com ele para o resto do projecto? Espero que sim!
23 de fevereiro de 2021
Visita à fábrica Mariano Shoes
A máscara cobre-me metade do rosto. As mãos desinfectadas seguram o caderno e a caneta. Entro na fábrica Mariano Shoes, que gentilmente, se disponibilizou a mostrar-me o processo de fabrico de um sapato. Avisam-me logo à entrada:
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“Aqui há segredos! Há sempre gente a querer descobrir como se fazem os sapatos!”
Limpo meus sapatos ao tapete de entrada, olho para os meus pés e percebo que não fiz a melhor escolha, afinal, escolhi os meus sapatos mais gastos e mais rotos para esta visita.
A equipa do Teatro da Didascália já falou com alguns trabalhadores para que possam integrar o projecto. Conheço-os pessoalmente, guiam-me pelas máquinas que operam, contam-me cada passo até se ter, finalmente, o sapato na mão.
No acabamento, dizem-me:
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“Aqui não há máquinas que nos substituam. Aqui, é preciso pôr o amor. É onde se mima o sapato.”
24 de fevereiro de 2021
Entrevistas a senhoras do Bairro do Orreiro, por ZOOM.
Aquilo que seria uma sessão de captação de possíveis participantes acabou por se tornar num momento emotivo e pessoal. Cada uma destas mulheres tem uma história de vida que impressiona. A infância mistura-se com o trabalho, as suas histórias de pés descalços misturam-se com fome, relações violentas e vidas de sacrifício. Hoje, falam-nos dessas memórias com leveza e gargalhadas desconcertantes.
Uma das entrevistadas diz-nos que, se tivesse podido escolher, teria escolhido ser actriz. E logo este primeiro projecto que será construído a partir do teatro!
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Venha! - dizemos-lhe.
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Mas não sei ligar-me a isto [à videochamada] sem ajuda.
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Nós ensinamos-lhe.
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Mas quando passar a presencial, não tenho como ir. - lamenta.
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Vamos buscá-la!
3 de março de 2021
Consulta de arquivo e entrevistas
Passo novamente a manhã a consultar o arquivo do Museu do Calçado. Encontro publicidade antiga, relatórios de fábricas que entretanto fecharam, catálogos de todo o lado, teses de mestrado, recortes de jornais.
Cruzo-me com outra frase: “Bastam-te dois saltos para se dar a volta ao mundo.”
Enquanto o mundo continua fechado, é através destes arquivos que vamos viajando entre tempos que foram e os tempos que agora são.
Durante a tarde recebo Jorge Ribeiro, autor do livro “A História do Calçado”, para uma entrevista. Diz-me que não poderá acompanhar o projecto como participante, mas que estará na primeira fila a assistir à apresentação.
O que ele ainda não sabe é que, neste projecto, há dois tipos de participação. Chamei-lhes as pessoas-memória, e as pessoas-acção. Mesmo sem saber, Jorge Ribeiro acaba de participar, contribuindo com a sua memória.
12 de março, 15h
Entrevistas
Volto a encontrar-me com pessoas-memória. Desta feita, Fernanda e Augusto antigos trabalhadores da indústria do calçado. Contam-me o dia a dia, as conquistas, as revoltas, os cartões da profissão, a luta sindical, as condições de trabalho. Vivem agora a reforma, viajando de caravana sempre que podem. Quem passou a vida a fazer sapatos, bem merece agora dar-lhes corda e gastar-lhes a sola.
Quase todas as pessoas que entrevistei guardam histórias de intensas vidas de trabalho, mas também de um amor inexplicável àquilo que é a sua profissão, e a sua função. Como se, na mesma proporção, andassem sempre de mãos dadas o amor e a dor.
18 de março
Como conseguirei criar uma relação com cada uma destas pessoas através de um ecrã de computador? Decido escrever uma carta, à mão, a cada um dos participantes. A Vera e a Anais, companheiras imprescindíveis desta viagem, ajudam-me na distribuição porta a porta. Junto com a carta, entregamos uma bola de ténis. Bem sei que os campos estão fechados e este tipo de actividades em grupo proibidas.
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“Guardem a bola para a próxima sessão, online!” - peço a cada pessoa a quem cumprimento ao longe, de máscara e punho esticado.
19 de março, 18h30
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Receberam as minhas cartas? E têm convosco a bola de ténis? - pergunto às pessoas que se vão tentando ligar por ZOOM.
Ao grupo da sessão passada, juntaram-se mais pessoas. Preciso que todas se sintam integradas, escutadas e acarinhadas.
Estou novamente nervosa. Preciso de activar o meu corpo e o das pessoas. Como fazer isto através de sessões online? Desafio os participantes a descalçar-se. Com a planta do pé, pisam a bola de ténis. Vão descobrindo que zonas do pé provocam mais dor. A bola de ténis permite-nos fazer uma auto-massagem, se vivermos sozinhos, permite-nos aquilo o auto-cuidado, tão importante em momentos como este que atravessamos colectivamente.
Depois das plantas dos pés, encostamo-nos a uma parede, segurando a bola com as costas. A massagem continua, insistimos nos pontos mais críticos. Espreguiçamo-nos, alongamos e voltamos às janelinhas do ZOOM para dizer como nos sentimos.
Peço-lhes que me conte uma história com sapatos. Pode ser uma história pessoal, uma fábula, um poema, uma anedota.
A conversa segue, sem guião. São pessoas que não se conhecem a falar sobre si próprias, as suas histórias e sobre o que as fez estar ali. E basta.
24 de março
Escrevo novamente a todos os participantes. São dez horas de escrita, à mão. Uma carta a cada um.
25 de março
Entregamos as cartas aos participantes, porta-a-porta.
26 de março
Regressamos para a terceira sessão, em ZOOM. A cada sessão vão se juntando novos participantes. E os que têm estado desde o início já vão iniciando sem moderação, perguntando onde o outro vive, pedindo para relembrar o seu nome, descobrindo conhecidos em comum, ou esclarecendo se também frequenta a mesma farmácia.
Haveremos de construir um espectáculo. Haveremos de poder estar juntos, de participar num processo criativo em conjunto. Por agora, conseguirmos que as pessoas se liguem à sessão online é uma vitória, provocar momentos de conversa e partilha é ambição suficiente. Estamos a conhecer-nos. É como diz o Sérgio Godinho: “É que hoje fiz um amigo e coisa mais preciosa do mundo não há.”
1 de abril
Quando se pode chamar grupo a um grupo? Talvez a partir de hoje.
A cada sessão, os laços estreitam-se. Temos partilhado muitas histórias uns com os outros. Vou registando frases soltas, formas de falar, pensamentos avulsos que alguém verbaliza.
Anseio o dia em que podemos estar juntos e poderei escrever tudo isto num papel de cenário, colado numa parede. Assim, poderemos começar a imaginar um esqueleto de um espectáculo, poderei partilhar o meu processo de trabalho, que tem sido a escrita original a partir de histórias, entrevistas e contributos das pessoas. Tenho dito a estes participantes que tudo o que dão, devolverei em forma de espectáculo, com eles. Será que acreditam?
muitos dias de abril
Continuam as sessões com os participantes e continua o trabalho invisível que permite que o projecto aconteça. As restrições de combate à pandemia começam a aliviar e avizinha-se o dia em que nos podemos ver, finalmente, em carne e osso. Seremos mais baixos ou mais altos do que imaginámos? Como serão os nossos cheiros?
Já partilhámos tantas das nossas vidas e das nossas histórias, e nunca demos um único abraço. Que tempos estranhos.
Chega, de repente, o dia em que marcamos a primeira sessão presencial.
Antes de os participantes chegarem, ensaiamos o desinfectar das canetas, a medição da temperatura, os circuitos para que ninguém se cruze nos corredores.
Imaginei este dia numa sala ampla, em que estaríamos deitados no chão, em que nos descalçaríamos e faríamos massagens nos pés uns dos outros. Imaginei colar papéis de cenário pelas paredes, e pedir a cada um deles que fosse escrevendo o que fosse necessário. Nada disto nos é permitido.
Usamos um auditório para as primeiras sessões. Os participantes estão sentados, distanciados, não se podem levantar. Eu, fico à frente, naquele que deveria ser o lugar do conferencista, ou do professor. Acontece que não sou nem uma coisa nem outra.
Como conseguirei descontruir a hierarquia que a geografia da sala impõe?
Resolvo criar quatro frentes de trabalho, em vez do tradicional palco, de frente para os lugares da plateia. Em cada uma das quatro paredes colo papel de cenário.
Na impossibilidade de ter os participantes a circular e a registar o que vamos falando em cada sessão, compramos um caderno e oferecemos a cada participante.
O desafio é que escrevam no caderno frases, pensamentos ou histórias que poderão contribuir para a dramaturgia do espectáculo. Depois, partilham uma selecção desses escritos e eu própria salto de parede em parede para os registar. Os participantes vão rodando nas cadeiras, ora olham para as suas costas, ora olham para os lados ou para a frente. É o mais próximo que consigo para que se mexam, sem sair do lugar.
As paredes começam a ficar cheias. A cada sessão preenchemos com mais frases, fazemos jogos a partir delas. Começamos a reagrupar as ideias, a formar aquilo que poderão ser “cenas”, a imaginar um fio condutor, a trocar coisas de lugar, a imaginar inícios e fins de histórias.
O espectáculo está todo nestas paredes. Eles é que ainda não o perceberam.
29 de abril
Depois de tanto do que me deram, chega o dia em que trago um primeiro texto escrito, para lermos em conjunto. Não consigo esconder o nervosismo. É sempre um momento especial, quando mostramos a outro aquilo que escrevemos e ouvimos outras vozes a ler as nossas palavras em voz alta. Será que vão gostar? Será que se vão reconhecer no que escrevi? Será que vai estar à altura das suas expectativas? E será que fará jus àquilo que foram as histórias desta indústria e de quem nela trabalhou?
Finalmente pudemos passar para uma sala que nos permite trabalhar num círculo, vendo-nos a todos por igual, olhando nos olhos do outro. Estou feliz.
3 de maio
Os ensaios continuam. Fazemos um aquecimento colectivo, depois dividimo-nos pelos grupos de cada cena. Cada grupo vai para um espaço diferente, decoram texto, ensaiam, conversam, desabafam, trocam ideias, riem.
Ainda há cenas que não estão totalmente escritas. Vou andando de grupo em grupo, ora ensaiamos, ora rectificamos o texto, ora entrego um novo texto para se trabalhar.
Os participantes vão trocando entre si, substituindo quem falta, ajudando outros grupos a memorizar, fazendo de espectadores para se irem habituando a lidar com os nervos de estar alguém a ver.
4 de maio
Ensaiamos a terceira cena, com a Maylet, a Natália, o Rufus e a Carménia. A Aldina não entra na cena mas, como participa em quase todas as sessões, vai ajudando no que é preciso. Mais de metade do ensaio foi passado a conversarmos sobre os lugares de onde viemos e os lugares onde pertencemos. Partilham-se histórias de vida, histórias pessoais. Num ápice, viajamos de São João da Madeira para a Venezuela, para a Alemanha, para Angola e para Moçambique.
Durante o ensaio, o Santiago está fazer uma pequena intervenção cirúrgica e não poderá vir nos próximos dias. Enviamos-lhe 13 segundos de boa sorte.
5 de maio
Muitos dias de maio
Decorrem os ensaios. Às vezes está o grupo todo, mas a maioria das vezes fazemos aquilo a que chamamos ensaios parcelares. Ensaiamos as cenas isoladamente e fazemos escalas de horários para diferentes as diferentes cenas. De manhã costumam ir a Fernanda, a Isabel e a Laurinda, a meio da tarde costumam ensaiar a Natália, o Rufus, a Carménia e a Maylet. Ao fim do dia reunimos o Daniel, a Lis e o António. Em dias intercalados, mas pela mesma hora, juntamos ainda ora a Ana e a Teresa, ora o André, a outra Ana e o Santiago.
O José António e o Xavier também vão aparecendo para ensaiar, mas apercebi-me de que combinam entre eles encontros no atelier do Xavier. Decoram o texto juntos, e o José António vai partilhando com ele as memórias que as suas mãos guardam dos tempos em que também ele fazia sapatos. Entretanto juntou-se ao grupo o Miguel, e eu juntei-o ao José Manuel.
Nem todas as cenas estão ainda escritas. A cada ensaio vou levando novas falas, vou alterando outras. É um espectáculo em plena fase de construção, e é construído por e para quem nele participa. Preciso que confiem em mim quando digo que vai correr bem, que vamos acabar por ter um texto fechado, que vamos estrear e que todos vão conseguir ter a coragem necessária para estar em público.
Ainda temos a Isabel e a Aldina, que contribuem com as suas histórias, o seu apoio e a sua presença. Estão sempre prontas e preparadas para tudo, apesar de não querer participar como actrizes. A verdade é que o teatro faz-se de muitas pessoas, de muitas mãos, e de muitas profissões. Os seus contributos, mesmo na invisibilidade, estão a ser essenciais!
12 de maio
Visitámos o atelier do Xavier para lhe pedir, em segredo, que fizesse dois pares de sapatinhos para o José António, seu companheiro de cena, que está prestes a ser avô de duas meninas, gémeas. Ontem, no ensaio com o Miguel, acrescentámos uma referência a este acontecimento, e lembrámo-nos que o Miguel deveria tirar do bolso dois pequenos sapatinhos. O Xavier aceitou fazê-los em tempo recorde. Como as cenas acontecem ao mesmo tempo, e como já não será possível que os participantes vejam as cenas uns dos outros, o José António só saberá deste momento minutos antes da estreia, que será quando lhe vamos contar que, no mesmo momento em que estará a fazer a sua cena, parte do público estará a ver a cena do Miguel, ouvindo que poderá ser avô a qualquer momento!
Agora, é esperar que não resolvam nascer antes da estreia!
5 de maio
Muitos dias de maio
Decorrem os ensaios. Às vezes está o grupo todo, mas a maioria das vezes fazemos aquilo a que chamamos ensaios parcelares. Ensaiamos as cenas isoladamente e fazemos escalas de horários para diferentes as diferentes cenas. De manhã costumam ir a Fernanda, a Isabel e a Laurinda, a meio da tarde costumam ensaiar a Natália, o Rufus, a Carménia e a Maylet. Ao fim do dia reunimos o Daniel, a Lis e o António. Em dias intercalados, mas pela mesma hora, juntamos ainda ora a Ana e a Teresa, ora o André, a outra Ana e o Santiago.
O José António e o Xavier também vão aparecendo para ensaiar, mas apercebi-me de que combinam entre eles encontros no atelier do Xavier. Decoram o texto juntos, e o José António vai partilhando com ele as memórias que as suas mãos guardam dos tempos em que também ele fazia sapatos. Entretanto juntou-se ao grupo o Miguel, e eu juntei-o ao José Manuel.
Nem todas as cenas estão ainda escritas. A cada ensaio vou levando novas falas, vou alterando outras. É um espectáculo em plena fase de construção, e é construído por e para quem nele participa. Preciso que confiem em mim quando digo que vai correr bem, que vamos acabar por ter um texto fechado, que vamos estrear e que todos vão conseguir ter a coragem necessária para estar em público.
Ainda temos a Isabel e a Aldina, que contribuem com as suas histórias, o seu apoio e a sua presença. Estão sempre prontas e preparadas para tudo, apesar de não querer participar como actrizes. A verdade é que o teatro faz-se de muitas pessoas, de muitas mãos, e de muitas profissões. Os seus contributos, mesmo na invisibilidade, estão a ser essenciais!
O José Manuel experimenta a bicicleta que arranjamos para a sua cena. Não é exactamente como a dele, diz-nos. A dele era mais bonita e mais cuidada. Tinha uma campainha. Esta não tem. Vamos ter de arranjar uma. A campainha é fundamental!
13 de maio
Faltam poucos dias para a estreia. A Laurinda não pôde vir ao ensaio porque teve de ficar em isolamento, devido à pandemia, pois esteve com um contacto de risco. Não saberemos quando poderá sair para se juntar a nós de novo.
A cena em que participa com a Isabel e a Fernanda está escrita e as participantes já a decoraram. Vai ser muito dificil descrevê-la transformando-a numa cena para duas actrizes e, sobretudo, pedir-lhes para que decorem tudo de novo.
A Maylet diz: a minha filha está a ajudar-me a decorar o meu texto, em casa, e diz que gostava de participar. Tem 18 anos, é possível?
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Ela poderia vir esta tarde?, pergunto.
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Sim, ela consegue estar aqui às 18h!, diz-me a Maylet.
Talvez tenhamos encontrado a solução. A Ivanna poderá substituir a Laurinda. É certo que aquela não será a sua história, mas poderá ficar bastante bonito ter uma tão grande diferença de idades em cena, a falar sobre histórias de trabalho.
os dias de maio são pequenos de mais para tanta actividades, por cá continuamos os ensaios.
17 de maio
Hoje é dia de ensaio geral.
Prepara-se a plateia para receber alguns espectadores nossos cúmplices. Afinal, até os espectadores precisam de ensaiar. Carregamos cadeiras, medimos as distâncias, marcamos os percursos do público, desifectamos corrimões.
Este espectáculo será uma visita-percurso. Há pegadas, há caminhos, há rastos a seguir. Voltamos sempre aos primeiros instintos.
Precisamos de ensaiar a divisão do público por grupos, ensaiar as suas movimentações, as distâncias de segurança entre cada uma das pessoas. Hoje, no exterior do Museu do Calçado, estão cerca de trinta pessoas, entre participantes, produção, apoio técnico, trabalhadores do museu.
Estamos felizes por estar juntos. Até parece mentira!
Ao longo dos últimos meses não só deixámos novas pessoas entrar na nossa vida, como reaprendemos a criar relações em tempos de pandemia.
Criámos um espectáculo a partir das memórias e das histórias da indústria do calçado. São histórias contadas na primeira pessoa pelos participantes-intérpretes, o que não quer dizer que aquelas palavras ou aquelas vivências lhes pertençam. Misturámos tudo, cruzámos mitos com provérbios, histórias da cidade com histórias de vida. Criámos uma dinâmica de grupo em que é possível que outra pessoa conte aquilo que começou por ser uma memória minha. É uma visita-percurso sobre a história do calçado e sobre a história daquelas pessoas. Chamámos-lhe “Cada um sabe onde lhe aperta o seu sapato”.
É um objecto artístico sobre diferentes caminhos, diferentes escolhas, diferentes oportunidades. É sobre fazer um sapato com as próprias mãos, ou poder escolher usar os pés para se dançar. É sobre sonhos por realizar, e também sonhos cumpridos. É sobre viagens, exílios, malas perdidas, pés descalços e sapatos apertados.
Damos um abraço, olhamo-nos nos olhos: muita merda!
18 de maio
Estreamos “Cada um sabe onde lhe aperta o seu sapato”.
22 de maio
Hoje fazemos pela última vez o espectáculo. Fazemo-lo às 11h30 da manhã, pois não estão permitidos espectáculos à noite aos fins de semana. Na sala que transformámos em camarim, todos estão mais relaxados do que no dia da estreia. Ouvem-se piadas, risos, música. Houve quem trouxesse sacos enormes de cerejas para partilhar.
A apresentação corre bem. Toda a gente está feliz.
Todos os participantes se juntaram para me oferecer uma mochila e uma espada de São Jorge. Registamos o momento com uma fotografia de grupo.
Será que daqui a um ano, quando o projecto estiver a terminar, conseguiremos voltar a repetir esta imagem?
Em conversa, no fim, descobrimos que o José António nunca soube que o Xavier, com quem contracena, chegou a fazer os sapatinhos para as suas netas, como lhe pedimos. O Miguel usa-os na sua cena, e, como nunca se conseguem ver uns aos outros, o José António ainda não sabia da sua existência. O Xavier ofereceu-lhos.
Não vou contar quantos de nós chorámos nesse momento.
Memória da apresentação
final
Folha de sala
Créditos
Textos de Sara Barros Leitão
Imagens de Ivo Rainha e Teatro da Didascália